Ruy Medeiros | Os colares de Vó Doceu 1k641v

Foto: BLOG DO ANDERSON

Ruy Medeiros

Li e irei reler o livro de Fernando Eleodoro, “Os Colares de Vó Doceu”. Li-o em razão da autoria que recomenda o autor, grande conhecedor da literatura, graduado nesse saber, professor testado por gerações, homem de sensibilidade acurada. Isso foi a motivação inicial da leitura do livro. Do autor havia lido outros romances, que se encontram injustamente inéditos, com destaque para “Acácias Azuis”.

Vou reler Os Colares em razão de sua qualidade.

De início, o leitor observa que o romance está estruturado quase totalmente em diálogos e que seus capítulos são curtos. A certa altura ele já pode entender (e ao final confirmar) que o diálogo estruturador do livro diz respeito ao sentido do conteúdo marcado por propósitos de igualdade, liberdade e aceitação da dignidade das pessoas. Estabelece-se o diálogo entre próximos, mesmo que alguns estejam socialmente distantes. O conjunto de capítulos fortemente dialogados, ao invés de abusar o leitor, provoca-lhe a vontade de prosseguir na leitura, tem efeito de movimentar o texto (para isso a linguagem adotada contribui muito) e de fazer com que a apresentação de cada personagem esteja em sua própria fala.

O linguajar nos diálogos, vai além do simples coloquialismo. O leitor atento verificará que, assim como aqueles, a linguagem adotada não é gratuita (flui bem naturalmente) e se relaciona com o mesmo sentido de elogio da igualdade, liberdade e respeito à dignidade das pessoas. Muitas vezes essa linguagem alcança o nível da carnavalização: a chamada linguagem vulgar, o uso de palavras consideradas obscenas, cujo significado “oculto” está no uso igualitário do idioma, a partir de baixo, nivelador dos falantes na igualdade desses.

A carnavalização iguala as pessoas na liberdade de falar, na transgressão da norma culta ou normal (falar da forma proibida, expressar o baixo calão). Assim, esse uso livre da linguagem tem o sentido de fazer confluir, igualar. Ao invés de desqualificador, o calão (essa palavra já é fruto do preconceito linguístico) assume papel igualmente de aproximar (falar a mesma língua). Os falantes estão em liberdade no uso da língua.

Estão carnavalizados.

A igualdade vocabular entre os falantes não estabelece identidade, mas indica proximidade e amizade às vezes profunda.

No desenvolvimento do enredo, personagens bem individualizadas, podem substituir umas às outras, em algum momento. O primeiro plano com o jovem que abre o romance com gesto agressivo que, logo, percebe-se ser comportamento brincalhão e amigo. Esse não sai do foco do primeiro plano, mas pode dividi-lo com um ou outro (avô, avó, pai, irmã, auxiliar). Isso importa na garantia do diálogo e, depois, na construção de objetivo comum, com coincidências e superação de divergências. Pode-se exemplificar isso com o fato de personagem (principal?) ser visto como “um gauche na vida”, por colocar, em plano importante, a emoção e a amizade, ser considerado permanente criança, pessoa que ainda não cresceu. Ora trata-se de personagem masculino emocionalmente bem resolvido. O autor o concebe como igual ao avô paterno, igualmente bem resolvido, coloca-o em primeiro plano quase sempre, mas com alternância, em menor tempo, com os demais personagens ou vendo-os assumir o plano maior (caso da irmã, do avô paterno), em conjunto com outros.

O personagem que aos olhos dos familiares é considerado pessoa que se recusa crescer, só será visto como crescido quando assume um lugar na economia. Ser grande (adulto) para o capital é estar num dos polos, explorado ou explorador. Quando surge uma forma aceitável de gerir empresa criada pelo rico avô materno (aumento de salário, benefícios, moradia para os trabalhadores), e incorporar no projeto de desenvolvimento da empresa outras pessoas próximas àquele núcleo, mas distantes quanto à renda, o adulto-criança foi convencido de participar e transforma-se em homem.

Nesse momento, já há um círculo de pessoas que discutem e fazem propostas quanto à gestão da empresa do avô materno.
Novos personagens surgem de forma coerente e firme

A trama encaminha-se no sentido de mudança de história de vida de personagens, clima de negação de discriminação étnica e de gênero, e a construção de uma vila operária para moradia dos trabalhadores da empresa do avô materno.

O conjunto de vivendas (vila) destinado aos trabalhadores tem construção custeada pela venda dos colares deixados por morte da viúva do rico industrial (avó materna do personagem que “demorou de crescer”).

Penso que há uma simbologia forte no fato de serem os colares da avó materna a fonte de custeio da vila com casas para operários e outros equipamentos: colar supõe a unificação daquilo que é diverso e separado (contas, “gotas”, miçangas), um múltiplo, para formar uma unidade, com utilização de uma amarra, um cordão que, por sua vez, simboliza vínculo. Colar é usado sobre o pescoço, e sobre os seios, em contato íntimo, e daí advém sua simbologia em relação com sexo, com presença naturalmente no texto.

Os Colares de Vó Doceu unem.

Os Colares de Vó Doceu recusam nosso tempo: a hora dos bombardeios sobre hospitais, escolas, habitações, impunes, às vésperas dos oitenta anos do crime cometido em Hiroshima e Nagasaki, com o lançamento de bombas atômicas. Não é o romance desse ódio.
Os Colares de Vó Doceu será lançado por Fernando Eleodoro no próximo dia 23, no Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima, às 19:00 horas.

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